Cinema
1 – Barbie (Estados Unidos/Reino Unido; 2023)
2 – Oppenheimer (Estados Unidos/Reino Unido, 2023)
EXPLOSIVO - Cillian Murphy como o protagonista de Oppenheimer: filme sobre ascensão e queda do pai da bomba atômicaMelinda Sue Gordon/Universal Pictures/.
Hollywood viveu em 2023 um cenário de terra arrasada: ao longo de mais da metade do ano, os estúdios enfrentaram uma greve de roteiristas e atores que, de forma dramática, atrasou grandes lançamentos e cancelou produções. Antes de o mundo do entretenimento encarar esse abismo, contudo, um lance ousado se desenrolou a tempo de salvar o ano: o fenômeno “Barbenheimer”. A estreia mundial conjunta de Barbie e Oppenheimer, nos dias 20 e 21 de julho, era vista com reservas por entendidos do ramo: com as salas de exibição em baixa, atingidas por eventos como a já superada pandemia e a irrevogável ascensão do streaming, temia-se que não houvesse público suficiente para embalar as bilheterias de dois arrasa-quarteirões. Surpresa: a suposta disputa entre o filme sobre a famosa boneca da Mattel, vivida por uma fulgurante Margot Robbie, e a saga trágica do pai da bomba atômica, dirigida ao estilo denso do britânico Christopher Nolan, foi positiva para ambos, provando que a experiência de ver cinema na tela grande não está morta. Pelo contrário: juntos, eles passaram de 2 bilhões de dólares em faturamento — sendo a maior parte de Barbie, que fez 1,3 bilhão. Os diretores e atores entraram na brincadeira e incentivaram que as pessoas vissem a dobradinha. Cinemas exibiram maratonas, com um filme seguido do outro. O resultado não só impressionou, como deu um novo fôlego à indústria. Afinal, mais que uma boa sacada de marketing, os títulos se sustentam em qualidade. Ao longo de três horas de duração, Oppenheimer hipnotiza ao narrar a vida do físico do título, interpretado por Cillian Murphy, encarregado de criar o artefato que mudaria a história. Já Barbie, para além das amenidades inevitáveis em uma produção voltada ao público juvenil, revela-se um criativo libelo feminista. Tanto um quanto outro comprovam, enfim, o valor da inovação para espantar as crises — qualidade que se espelha, ainda, no melhor dos lançamentos da televisão, música e livros eleitos por VEJA nas próximas páginas.
3 – Assassinos da lua das flores (Killers of the Flower Moon; estados unidos; 2023)
TRAMA REAL - Lily Gladstone e DiCaprio em Assassinos da Lua das Flores: Martin Scorsese em sua melhor formaMelinda Sue Gordon/Apple/.
Aos 81 anos, o cineasta Martin Scorsese provou em 2023 que ainda tem muito a oferecer. Mestre de narrativas que navegam pela banalidade da violência, sempre com forte presença masculina, ele volta seu olhar a uma dura história real de nativos americanos em Assassinos da Lua das Flores. Nos anos 1920, o povo Osage, que enriqueceu ao achar petróleo em sua reserva, testemunhou mortes suspeitas que raramente eram investigadas. O mal-estar se sintetiza na relação entre uma indígena (Lily Gladstone) e um homem branco (Leonardo DiCaprio) — o qual estava envolvido nos assassinatos. Defensor da retomada do cinema de autor — e crítico da onda pasteurizada de super-heróis —, Scorsese voltou a brilhar nas bilheterias, mostrando que boas histórias não saem de moda.
4 – Homem-aranha: Através do Aranhaverso (Spider-Man: Across the Spider-Verse; estados unidos; 2023)
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Melhor animação do ano, e uma das mais ousadas da história, a sequência de Aranhaverso chegou com a expectativa de superar seu antecessor, vencedor do Oscar em 2019. A missão quase impossível foi cumprida. Na trama de visual impecável, Miles Morales é um jovem herói de 15 anos enfrentando os crimes de Nova York e os desafios da adolescência. Quando a vida o coloca frente a frente com um vilão poderoso, aracnídeos de outros universos, como um Homem-Aranha indiano, um punk e Gwen, a Mulher-Aranha, viram seus principais aliados. Com um roteiro afiado, que bebe de questões existencialistas, o filme coloca em xeque o que significa, de fato, ser um herói, superando com folga muitos live-actions vazios da Marvel e da DC.
5 – Elis & tom, Só Tinha de ser com você (brasil; 2023)
Os bastidores da tensa gravação de Elis & Tom, álbum histórico da música popular brasileira, ficaram guardados por quase cinquenta anos pelo cineasta Roberto de Oliveira — à época, empresário de Elis Regina. O registro, feito em um estúdio de Los Angeles em 1974, teve suas imagens e sons recuperados, num tratamento tecnológico que culminou neste excepcional documentário. Das brigas entre eles a momentos prosaicos de convivência, as imagens mostram a cantora, aos 29 anos, ao lado do maestro Tom Jobim, então aos 47, interpretando clássicos como Águas de Março. Ela, virtuose conhecida por seu potente gogó, e ele, um dos criadores da bossa nova, vivem inevitáveis choques de egos — mas acabam atingindo uma sinergia que resultou em obra-prima da MPB.
Televisão
1 – Succession (HBO)
PRIMOROSO - Brian Cox como Logan Roy: a saída de cena do patriarca favorito da TV produziu uma temporada antológicaMacall Polay/HBO
Na concepção original dos produtores de Succession, o patriarca Logan Roy sairia de cena logo na primeira temporada da série, lançando os herdeiros numa batalha feroz por seu império na mídia americana. Mas a interpretação fenomenal do inglês Brian Cox e as nuances irresistíveis do personagem — um Rei Lear na Nova York do século XXI — adiaram, felizmente, os planos. Pois na quarta e derradeira temporada da série, a despedida de Logan chegou, e de forma abrupta, desconcertante e brutalmente realista. A morte do magnata ensejou um dos mais extraordinários episódios da teledramaturgia americana, servindo de prelúdio para uma temporada primorosa. O vácuo deixado por seu desaparecimento instilou um caldo de intrigas familiares e corporativas tão crível quanto as melancólicas histórias de sucessão de impérios reais, com os filhos Kendall (Jeremy Strong), Shiv (Sarah Snook) e Roman (Kieran Culkin) medindo forças em meio a executivos e parentes esfomeados como hienas por dinheiro e poder. O resultado dessa guerra foi notavelmente justo, ainda que indigesto — e assim Succession ensinou: a TV pode não apenas ser arte, mas um espelho fiel da vida.
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2 – The Last of Us (HBO)
Quando se anunciou a adaptação para a TV do aclamado game The Last of Us, os fãs se dividiram entre a excitação e a preocupação — afinal, a maioria dos jogos levados às telas resultou em fiasco. Felizmente, não foi o caso aqui. A série parte de uma notável premissa criativa: o que aconteceria se um fungo real, o Ophiocordyceps, que é capaz de transformar formigas em “zumbis”, migrasse para os humanos? Ellie (Bella Ramsey) e Joel (Pedro Pascal) vagam pelos Estados Unidos devastados pela pandemia fúngica com a missão de encontrar um centro médico, já que Ellie se revela imune ao mal e pode carregar a cura. O segredo do sucesso, porém, está em uma trama densa, que vai além dos clichês sobre zumbis: aqui, os piores perigos são negacionistas, mercenários e todos os tipos humanos que querem tirar proveito da desgraça coletiva.
3 – Os Outros (Globoplay)
CAOS NO CONDOMÍNIO - A série Os Outros: a classe média brasileira em guerraPaulo Belote/TV Globo
Após uma briga entre dois adolescentes na quadra de um condomínio de alto padrão na Barra da Tijuca, do Rio de Janeiro, suas famílias passam de vizinhas a rivais em uma guerra de reações exageradas (e perigosas). No centro do conflito, a mãe superprotetora Cibele (Adriana Esteves, primorosa) mede forças com o destemperado Wando (Milhem Cortaz) num cenário que expõe as contradições de uma classe média que vive no desespero para pagar as contas, mas sempre se acha melhor do que seus semelhantes. A jornada de autodestruição das duas famílias abre espaço para a corrupção da síndica, os esquemas de um morador miliciano e relações extraconjugais que desencadeiam eventos catastróficos. O texto de Lucas Paraizo — mesmo roteirista de Sob Pressão — traduz com maestria uma realidade social que diz muito sobre o Brasil de hoje.
4 – Treta (Netflix)
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Descendentes de asiáticos, Danny (Steven Yeun) e Amy (Ali Wong) vivem sob o eterno estresse de vencer nos Estados Unidos. O faz-tudo Danny encara serviços precários com o intuito de trazer seus pais da Coreia do Sul para uma vida melhor. Já a empresária de origem chinesa se desdobra para vender sua empresa e, assim, conquistar a sonhada independência financeira, enquanto lida com uma sogra intrometida, um marido deslumbrado e uma filha pequena com ansiedade. Quando Amy e Danny se desentendem no trânsito, ambos entram em uma espiral de raiva e tentam de tudo para estragar a vida um do outro, como uma espécie de válvula de escape para seus próprios problemas. Poucas produções lançaram um olhar tão afiado sobre os dilemas adaptativos dos imigrantes orientais em terras ianques.
5 – Cangaço Novo (Prime Video)
O ano de 2023 trouxe vários sucessos brasileiros às plataformas de streaming, mas nenhum tão surpreendente quanto Cangaço Novo, drama que transforma o sertão nordestino em palco de uma disputa de poder épica. Inspirada pelo crime organizado que assola a região, a série é dirigida por Fábio Mendonça e pelo baiano Aly Muritiba, de Deserto Particular, que lhe confere assombrosa autenticidade no visual e nas atuações. Nela, o bancário Ubaldo (Allan Souza Lima) luta para se sustentar em São Paulo quando descobre ser filho de um cangaceiro morto. Para recuperar sua herança na cidade fictícia de Cratará, porém, ele deve mergulhar no banditismo e ganhar a confiança de uma irmã rancorosa, trilhando uma jornada de anti-herói tão eletrizante quanto insólita.
Música
RENOVADOS – Os Stones: disco excepcional aos 80Mark Seliger/.
Hackney Diamonds, de rolling Stones (Universal Music; nas plataformas de streaming)./.
1 – Hackney Diamonds, de Rolling Stones (Universal Music; nas plataformas de streaming)
Se o novo disco dos Rolling Stones fosse “apenas” um lançamento ordinário, já seria motivo suficiente para furor em todo o mundo. Mas Hackney Diamonds, o primeiro de inéditas em quase duas décadas (e também o primeiro sem o baterista Charlie Watts, morto em 2021), vai além. Mick Jagger, Keith Richards e Ron Wood entregam um álbum coeso e canções memoráveis, como Angry e Depending On You, fazendo rock’n’roll sem frescura, mas com concessões aqui e ali ao country (Dreamy Skies) e ao soul e gospel (Sweet Sounds of Heaven, com Lady Gaga e Stevie Wonder). Nas letras, os oitentões até refletem sobre a finitude da vida, mas, de forma patente, o que mais os diverte são mesmo as faixas sobre baladas intermináveis e bebedeiras. Os Stones se renovaram, enfim, mas continuam os senhores roqueiros de sempre.
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Afrodhit, de Iza (Warner music brasil; nas plataformas de streaming)./.
2 – Afrodhit, de Iza (Warner music brasil; nas plataformas de streaming)
Mais dona de si do que nunca após sair de um casamento infeliz, Iza descartou um álbum praticamente pronto e recomeçou o trabalho do zero, tomando as rédeas da própria sonoridade. O resultado é uma miscelânea poderosa de gêneros, que vai do R&B ao pop com pinceladas na medida de rap, reggae e funk. Feito pouco depois de seu divórcio, o segundo álbum da carioca emana uma profusão complexa de sentimentos que faz do trabalho o mais feminino e pessoal de sua carreira, indo da frustração pela relação fracassada na raivosa Que Se Vá à redescoberta da paixão e do sexo na picante e esperançosa Exclusiva.
The Record, de Boygenius (Interscope; nas plataformas de streaming)./.
3 – The Record, de Boygenius (Interscope; nas plataformas de streaming)
Formada por mulheres oriundas do rock independente, a Boygenius carrega no nome uma provocação, ao tirar sarro de como músicos homens são aclamados como gênios. Mas, para além da provocação, Phoebe Bridgers, Lucy Dacus e Julien Baker se revelam belas compositoras e intérpretes: o primeiro álbum do trio traz letras confessionais que soam como uma conversa entre amigas, amparadas por melodias pop e folk. Na poética Without You Without Them, cantam a capela. Já em $20 e Satanist pesam a mão nos instrumentos, dando voz às angústias de se ter 20 e tantos anos.
Livros
NOBEL - Jon Fosse: o dramaturgo narra angústias da vida real de forma filosóficaOle Berg-Rusten/NTB/AFP
Brancura, de Jon Fosse (tradução de Leonardo Pinto Silva; Fósforo; 64 páginas)./.
1 – Brancura, de Jon Fosse (tradução de Leonardo Pinto Silva; Fósforo; 64 páginas)
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O autor norueguês de 64 anos dirigia à beira de um fiorde — formação costeira típica de seu país — quando recebeu a notícia de que ganhara o Nobel de Literatura de 2023. Dramaturgo mais encenado do planeta, ele estava acostumado a figurar nos eternos favoritos, mas havia perdido as esperanças, dedicando-se a obras ecléticas sem pensar no prêmio. Assim nasceu Brancura. No breve enredo, um homem vaga por uma floresta movido pela curiosidade ao vislumbrar um ser reluzente. Filosófica, a prosa é construída com o ritmo de uma oração e impressiona pelo rigor formal do autor, cuja escrita bebe da poesia e da metafísica. Apesar de diáfana, sua obra retrata como poucas as angústias do mundo real. Como disse a Academia Sueca: Jon Fosse consegue transformar em palavras o indizível.
A Herança dos Bem-Aventurados, de Ayòbámi Adébáyò (Tradução de Bruno Ribeiro; HarperCollins; 366 páginas)./.
2 – A Herança dos Bem-Aventurados, de Ayòbámi Adébáyò (Tradução de Bruno Ribeiro; HarperCollins; 366 páginas)
Em contraste com o desenvolvimento econômico local, a Nigéria experimenta agruras políticas e sociais complicadas. Em seu segundo romance, a talentosa autora nigeriana faz um retrato afiado do país africano na atualidade, a partir de duas vidas opostas que se chocam: a do adolescente Eniolá, cuja família vive batalhas diárias em razão do desemprego do pai, comprometendo o acesso dos filhos a um bom estudo; e a da médica Wúràolá, nascida em um clã abastado e influente. Desigualdade social e de gênero, violência e corrupção permeiam uma trama envolvente que, apesar das tensões desoladoras, abre espaço para fagulhas de humanidade e alegria.
Amazônia na Encruzilhada, de Míriam Leitão (Intrínseca; 464 páginas)./.
3 – Amazônia na Encruzilhada, de Míriam Leitão (Intrínseca; 464 páginas)
A relação da jornalista mineira com a Amazônia começou na década de 1970, quando fez sua primeira reportagem por lá. Desde então, após diversas visitas e entrevistas, Míriam Leitão se tornou testemunha ocular das mudanças da região — experiência que culminou nesse notável livro-reportagem. Entre vivências jornalísticas de alta-tensão, como uma perseguição da polícia a garimpeiros, até uma variedade de exemplos de pessoas que desenvolvem atividades econômicas sustentáveis, a obra explora não só as consequências assustadoras do desmatamento, mas também expõe as possibilidades lucrativas e os aprendizados na maior floresta tropical do mundo.
Publicado em VEJA de 22 de dezembro de 2023, edição nº 2873
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